Regulamentação do uso de inteligência artificial em propagandas eleitorais

Por ACI: 24/03/2024

Introdução

A utilização de inteligência artificial (IA) no mundo é realidade em diferentes segmentos dos setores público e privado. No Brasil, não poderia ser diferente, embora ainda não haja legislação federal regulando o seu uso. Atualmente tramitam 46 projetos de lei na Câmara de Deputados e no Senado Federal, todos com sugestões para regulamentar o uso de IA no país. No âmbito do direito eleitoral brasileiro, onde o uso de IA é realidade, até então não havia regramento específico sobre o assunto. Contudo, recentemente, aconteceram mudanças importantes, que serão destacadas a seguir.

O presente artigo, portanto, tem por fim explicar as recentes alterações trazidas pela Resolução TSE (Tribunal Superior Eleitoral) nº 23.732/2024, que modificaram o texto da Resolução TSE nº 23.610/2019, que trata sobre propaganda eleitoral, com foco especial no uso de inteligência artificial em propagandas político-partidárias.

O tema é atual e relevante, destacando-se, a título de exemplo recente, caso de “deep fake” em discussão no Poder Judiciário (TRE) do Paraná, com relato de uso de áudio que simula a voz de pré-candidato à prefeitura de cidade paranaense, informando sobre inverídica desistência de candidatura e apoio a concorrente.

Como visto, tecnologias de IA podem ser usadas para prejudicar concorrentes em campanhas político-partidárias, demonstrando que as novas regras disciplinadas pelo Tribunal Superior Eleitoral chegam em bom momento, pois estamos em ano eleitoral.

Propósito da resolução

A partir da leitura da Resolução TSE nº 23.732/2024, percebe-se que ela visa garantir que o uso de tecnologias de inteligência artificial em propagandas eleitorais seja realizado com transparência e ética, em respeito ao princípio da lisura eleitoral, garantindo eleições transparentes, com iguais oportunidades e livre de abusos por parte dos candidatos, dos partidos e de outras pessoas que podem se beneficiar por distorções que o mau uso de IA pode ocasionar.

O ajuste da legislação vigente às novas tecnologias é crucial para prevenir a disseminação de informações falsas ou enganosas, como aquelas fabricadas a partir do uso indevido de ferramentas de IA, com potencial de distorcer a realidade de fatos e influenciar indevidamente o eleitorado.

Destaques da Resolução TSE nº 23.610/19 sobre o uso de IA nas eleições

A Resolução TSE nº 23.732/2024 introduziu novidades no texto da Resolução TSE 23.610/19, que dispõe sobre propaganda eleitoral. Contudo, no presente ensaio serão destacadas apenas três assuntos ligados ao tema que até então não estavam regulamentadas:

1 - Dever de informar aos eleitores sobre o uso de conteúdo sintético multimídia gerado por IA:

A Resolução do TSE nº 23.610/19, com a nova redação conferida pela Resolução TSE nº 23.732/2024, impõe o dever de informar ao eleitorado sempre que ocorrer o uso de IA na criação de conteúdo para propagandas eleitorais.

Conforme dispõe o art. 9º-B, “A utilização na propaganda eleitoral, em qualquer modalidade, de conteúdo sintético multimídia gerado por meio de inteligência artificial para criar, substituir, omitir, mesclar ou alterar a velocidade ou sobrepor imagens ou sons impõe ao responsável pela propaganda o dever de informar, de modo explícito, destacado e acessível, que o conteúdo foi fabricado ou manipulado e a tecnologia utilizada.”

Os responsáveis pelas propagandas deverão, portanto, informar explicitamente sobre a manipulação de conteúdo político-eleitoral.

Segundo dispõe o § 1º do referido artigo, as informações sobre o uso de IA em propagandas eleitorais devem ser apresentadas:

“I – no início das peças ou da comunicação feitas por áudio;

II – por rótulo (marca d’água) e na audiodescrição, nas peças que consistam em imagens estáticas;

III – na forma dos incisos I e II desse parágrafo, nas peças ou comunicações feitas por vídeo ou áudio e vídeo;

IV – em cada página ou face de material impresso em que utilizado o conteúdo produzido por inteligência artificial.”

A obrigação de usar transparência e destacar o uso de IA tem por objetivo de informar eleitores sobre a natureza artificial dos conteúdos que consomem, contribuindo para escolhas conscientes.

2 - Proibição de uso de IA para difundir deep fakes

A resolução veda expressamente a produção e disseminação de deep fakes - conteúdos sintéticos altamente realistas gerados por IA que modificam áudios e vídeos para criar falsas representações. Para melhor esclarecer, meios de comunicação sintéticos são áudios, vídeos, mensagens de voz e textos gerados total ou parcialmente por computadores.

Segundo dispõe o art. 9º-C, “É vedada a utilização, na propaganda eleitoral, qualquer que seja sua forma ou modalidade, de conteúdo fabricado ou manipulado para difundir fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados com potencial para causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral.

Sobre o uso de deep fake, o § 1º do apontado artigo menciona que “É proibido o uso, para prejudicar ou para favorecer candidatura, de conteúdo sintético em formato de áudio, vídeo ou combinação de ambos, que tenha sido gerado ou manipulado digitalmente, ainda que mediante autorização, para criar, substituir ou alterar imagem ou voz de pessoa viva, falecida ou fictícia (deep fake).”

A prática de deep fake está proibida em propagandas eleitorais, mesmo porque o eleitor, ainda que se parta de um conceito de “homem médio” (enquanto pessoa consciente, cuidadosa e prudente), não consegue identificar, de pronto, o uso de tecnologia, aumentando o compartilhamento de notícias falsas e desinformação.

O uso de deep fake para prejudicar ou favorecer candidaturas configura “abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação social, acarretando a cassação do registro ou do mandato, e impõe apuração das responsabilidades nos termos do § 1º do art. 323 do Código Eleitoral, sem prejuízo de aplicação de outras medidas cabíveis quanto à irregularidade da propaganda e à ilicitude do conteúdo”, conforme o art. 9-C, §2º, da Resolução TSE nº 23.610/19.

Sem dúvida, a prática é vedada em decorrência do potencial de causar danos à integridade do processo eleitoral, afetando principalmente o princípio da lisura eleitoral referido no início deste ensaio.

3 - Regulação do uso de chatbots e de avatares

O uso de chatbots e avatares em campanhas eleitorais é permitido, desde que seja informado aos eleitores e com atendimento aos requisitos do art. 9-B da resolução (citado nos parágrafos precedentes), sendo vedadas simulações de interlocuções com a pessoa candidata ou com uma pessoa real (art. 9º-B, §3º, da resolução).

O chatboot, para melhor esclarecer, é um software que usa IA com capacidade de interagir com um ser humano em tempo real por mensagens de texto ou voz. Avatar, por sua vez, é um corpo virtual, a representação gráfica de uma pessoa num ambiente virtual.

A regra da proibição de interação do avatar com o candidato ou com uma pessoa real visa evitar que o eleitorado seja induzido em erro por meio de interações artificiais que mascaram conteúdos.

Importante ainda elucidar que o descumprimento das regras do caput do art. 9-B e do §3º do mesmo artigo ocasiona a imediata remoção do conteúdo ou indisponibilidade do serviço de comunicação, o que poderá acontecer por iniciativa do provedor de aplicação ou por ordem judicial.

A nova resolução estabelece, como visto, situações em que o uso de IA é possível, assim como exceções a essa regra, visando um equilíbrio entre inovação tecnológica e integridade eleitoral.

Considerações finais

No Brasil, embora existam mais de quarenta projetos de lei tramitando na Câmara dos Deputados e no Senado Federal para regular o uso de inteligência artificial, a matéria ainda aguarda posicionamento da Comissão Temporária sobre Inteligência Artificial do Senado Federal, criada especialmente para desenvolver e debater o assunto.

Mesmo assim, enquanto ainda não contamos com legislação federal regulamentando o uso de IA, mostra-se louvável a iniciativa do TSE de, através da Resolução 23.732/24, atualizar as regras sobre propaganda eleitoral para evitar o uso indevido deste tipo de tecnologia e iniquidade no processo eleitoral.

Candidatos e partidos devem agir com transparência, informando sobre o uso de IA em propagandas eleitorais, de forma destacada, tudo para assegurar a lisura e a confiança no processo eleitoral.

Avatares e chatbots são bem-vindos, desde que não sejam usados para simular, enganar ou ludibriar eleitores. Empregar inteligência artificial para criar deep fakes (imagens, áudios ou vídeos que pareçam reais) está vedado pelas novas regras sobre propaganda eleitoral, tudo para não induzir o eleitorado em erro.

O assunto exige amadurecimento que acontecerá nos próximos meses, principalmente por estarmos em ano eleitoral, em que campanhas e propagandas político-partidárias produzidas com inteligência artificial deverão sujeitar-se às novas regras, nem sempre de fácil cumprimento, interpretação e fiscalização.

A judicialização de questões polêmicas mediante provocação do Poder Judiciário será inevitável e importante para amadurecer o assunto, assegurando um processo eleitoral igualitário e justo no que diz respeito ao uso de inteligência artificial.

Fontes

https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2024/resolucao-no-23-732-de-27-de-fevereiro-de-2024

https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2019/resolucao-no-23-610-de-18-de-dezembro-de-2019

Izabela Lehn - Advogada
Vice-presidente jurídica da ACI-NH/CB/EV/DI
Izabela Lehn Advocacia

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