Força estratégica das normas coletivas: prevalência do negociado sobre o legislado no contexto empresarial
Por ACI: 15/08/2025
A reforma trabalhista, introduzida pela Lei nº 13.467/2017, marcou um ponto de inflexão nas relações de trabalho no Brasil, ao consolidar, nos artigos 611-A e 611-B da CLT, o princípio da prevalência do negociado sobre o legislado. Tal avanço jurídico foi posteriormente referendado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Tema 1.046 de repercussão geral, que firmou tese no sentido de que acordos e convenções coletivas podem restringir ou afastar direitos trabalhistas previstos em lei, desde que não atinjam direitos absolutamente indisponíveis.
Na prática, essa diretriz fortaleceu o papel da negociação coletiva, permitindo que empresas e sindicatos ajustem condições de trabalho mais aderentes à realidade setorial, desde que observados os limites constitucionais e a proteção mínima ao trabalhador.
O caso da cota de aprendizes no setor de vigilância
Um exemplo recente da aplicação desse entendimento foi a decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT2), que manteve a validade de cláusula em norma coletiva prevendo que empresas de vigilância podem limitar a base de cálculo da cota legal de aprendizes ao setor administrativo.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) buscava, por meio de ação civil pública, obrigar a inclusão da função de vigilante no cálculo da cota prevista no art. 429 da CLT (mínimo de 5% de aprendizes). A tese do MPT foi rejeitada, e o tribunal reconheceu que a cláusula coletiva refletia as especificidades do setor e estava respaldada pelo princípio da autonomia negocial coletiva, previsto na reforma trabalhista e validado pelo STF.
Essa decisão demonstra como a utilização estratégica de instrumentos coletivos pode não apenas adequar obrigações legais à realidade operacional de um segmento, mas também conferir segurança jurídica às empresas, evitando litígios onerosos.
Quando não há norma coletiva, a lei prevalece
O mesmo TRT2, contudo, proferiu decisão oposta em outro caso do mesmo segmento de vigilância. Nessa situação, não havia norma coletiva tratando da flexibilização da base de cálculo da cota de aprendizes.
Diante da ausência de previsão negocial, a Corte determinou que a empresa cumprisse integralmente o percentual de aprendizes previsto em lei, concedendo prazo de um ano para adequação, fixando multas diárias e exigindo relatórios bimestrais.
O relator, desembargador Orlando Apuene Bertão, ponderou sobre a escassez de cursos de formação de vigilantes e limitou o encargo para evitar inviabilidade econômica, mas ainda assim reforçou que na ausência de norma coletiva válida, o texto legal prevalece integralmente.
Impacto da norma coletiva na cota de aprendizes – Setor de vigilância (TRT2)
Aspecto |
Caso 1 – Com norma coletiva |
Caso 2 – Sem norma coletiva |
Situação |
Cláusula coletiva limitando a base de cálculo da cota de aprendizes apenas ao setor administrativo. |
Empresa sem previsão coletiva específica sobre a base de cálculo. |
Ação Judicial |
MPT buscava incluir vigilantes no cálculo da cota. |
MPT buscava obrigar empresa a cumprir integralmente a cota legal (5% do total de empregados). |
Fundamento da Decisão |
Prevalência do negociado sobre o legislado (art. 611-A/B da CLT) e Tema 1.046 do STF. Reconhecimento das especificidades do setor. |
Aplicação literal do art. 429 da CLT. Ausência de norma coletiva que flexibilizasse a obrigação. |
Resultado |
Norma coletiva considerada válida. Pedido do MPT rejeitado. |
Empresa condenada a cumprir cota integral, com prazo de 1 ano para adequação, multas diárias e relatórios bimestrais. |
Efeito Prático |
Redução da obrigação legal, ajustando-se à realidade operacional da empresa. |
Obrigação máxima prevista em lei, com risco de alto impacto operacional e financeiro. |
Lições e estratégias para empresas
Esses dois julgados evidenciam que:
1 - A negociação coletiva é ferramenta de gestão – Empresas podem, junto ao sindicato representativo, construir soluções jurídicas que ajustem obrigações legais à realidade operacional, respeitando direitos indisponíveis.
2 - A formalização é essencial – A flexibilização só é possível se houver cláusula expressa em acordo ou convenção coletiva. Ausente essa previsão, a lei será aplicada em sua literalidade.
3 - Benefício mútuo – A negociação coletiva não favorece apenas a empresa; ela também pode ser usada para garantir direitos mais benéficos aos empregados, equilibrando necessidades produtivas e proteção social.
4 - Segurança jurídica – A jurisprudência recente, alinhada ao STF, fortalece a validade das cláusulas negociadas, reduzindo riscos de anulação judicial quando respeitados os limites constitucionais.
Conclusão
O princípio da prevalência do negociado sobre o legislado representa um dos mais importantes instrumentos de modernização das relações de trabalho no Brasil. As decisões do TRT2 no setor de vigilância mostram que a existência ou ausência de norma coletiva pode mudar completamente o desfecho de uma disputa judicial.
Empresas que atuam estrategicamente na negociação coletiva, com apoio jurídico qualificado, podem conquistar maior flexibilidade operacional, adequação de custos e redução de riscos, ao mesmo tempo em que contribuem para relações de trabalho mais equilibradas e sustentáveis.
Daniela Baum - Advogada
Consultora trabalhista e integrante do Comitê Jurídico da ACI-NH/CB/EV/DI/IV
Sócia da Baum Advocacia & Consultoria Empresarial