Requisição administrativa de bens e serviços de empresas e particulares em caso de perigo público iminente
Por ACI: 26/05/2024
I – Introdução
Em situações de calamidade pública e de perigo público iminente, como as que cidades do Rio Grande do Sul estão enfrentando em razão das cheias, autoridades podem requisitar bens particulares de pessoas físicas e jurídicas, móveis ou imóveis, produtos ou serviços, para resolver situações emergenciais.
Isso, tecnicamente, é conhecido no mundo jurídico como “requisição administrativa de bens”, ferramenta que permite ação rápida por parte das autoridades para suprir necessidades públicas em situações excepcionais, como saúde, alimentação, vestuário e produtos de higiene.
É o caso, por exemplo, de requisição de cestas básicas a hipermercados para garantir a distribuição de alimentos para desabrigados e atingidos pelas enchentes. O governo municipal, atendidos alguns requisitos, pode requisitar as cestas básicas e os hipermercados têm a obrigação de atender, sem prejuízo de posterior pagamento.
O tema é relevante e interessa às empresas e particulares, que devem informados sobre a possibilidade de serem instados para fornecer produtos e serviços, conforme será a seguir explicitado.
II – Fundamento legal para requisitar bens administrativamente
A Constituição Federal de 1988 é a principal legislação do sistema jurídico brasileiro, dispondo sobre os deveres do Estado e dos cidadãos. A requisição administrativa de bens está prevista no art. 5º da Constituição Federal, que trata sobre direitos e garantias individuais dos cidadãos brasileiros:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano.”
III – Casos em que bens de particulares podem ser requisitados e exemplo de um passado recente
Cuida-se de medida extrema, que poderá ser utilizada apenas em situações transitórias por autoridades para resolver situação de perigo público iminente, assegurando-se ao proprietário dos bens ou serviços requisitados (pessoa física ou jurídica), se o fornecimento dos produtos e serviços ocasionar danos ou prejuízos, o recebimento de indenização.
Como visto, a possibilidade de requisitar bens de particulares não é novidade, pois prevista na Constituição Federal brasileira desde 1988.
Contudo, o assunto foi debatido quando promulgada a Lei Federal nº 13.979/2020 que estabeleceu medidas para enfrentamento da pandemia, havendo expressa previsão de possibilidade de “requisição administrativa” de bens, por autoridades, para enfrentamento da pandemia:
“Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:
(...) VII - requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa.”
A lei federal acima citada tem aplicação apenas para situações decorrentes da Pandemia, mas demonstra antecedentes jurídicos, embasados na Constituição Federal, agora inseridos em legislações municipais em decorrência do estado de calamidade pública provocado pelas enchentes.
IV – Alguns decretos municipais recentes
Decretos emitidos por municípios do RS estão prevendo o uso de propriedades e serviços privados temporariamente, para mitigar ou resolver emergências decorrentes das cheias que ameacem a segurança, a saúde ou o bem-estar da população.
É o caso da Prefeitura Municipal de Novo Hamburgo, cujo Decreto nº 11.261/2024, de 03 de maio de 2024, assim dispõe:
“Art. 5. De acordo com o estabelecido nos incisos XI e XXV do art. 5º da Constituição Federal, as autoridades administrativas diretamente responsáveis pelas ações de enfrentamento, em caso de risco iminente, ficam autorizados a:
(...)
II - usar de propriedade particular, no caso de iminente perigo público, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano.”
O Decreto municipal da Prefeitura de Novo Hamburgo está amparado no art. 5º, XXV da Constituição Federal, citado nos parágrafos anteriores e também no inciso XI do mesmo artigo, que dispõe que a casa é “asilo inviolável” dos indivíduos e que ninguém pode nela entrar sem autorização do morador, salvo “em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro”.
A legislação da cidade de Novo Hamburgo, conforme apontado, dispõe sobre a requisição administrativa de “propriedade particular”, não referindo expressamente sobre produtos e serviços (https://leismunicipais.com.br/a/rs/n/novo-hamburgo/decreto/2024/1127/11261/decreto-n-11261-2024-declara-estado-de-calamidade-no-territorio-do-municipio-de-novo-hamburgo-em-razao-do-agravamento-das-chuvas-intensas-cobrade-13214).
Já o também recente Decreto Municipal nº 174/24, do Município de Canoas, está amparado apenas no art. 5º, inciso XXV, da Constituição Federal, e permite a requisição administrativa dos bens de particulares em razão da necessidade de enfrentamento da Situação de Emergência declarada por força do Decreto nº 167, de 2 de maio de 2024 (https://leismunicipais.com.br/a/rs/c/canoas/decreto/2024/18/174/decreto-n-174-2024-determina-a-requisicao-administrativa-de-bens-particulares-em-razao-da-necessidade-de-enfrentamento-da-situacao-de-emergencia-declarada-por-forca-do-decreto-n-167-de-2-de-maio-de-2024?q=decreto+174).
A legislação da cidade de Canoas dispõe que a requisição tem caráter coercitivo (obrigatório), e que deverá ser cumprida imediatamente pelo particular, sob pena de configuração do ilícito previsto no art. 330 Código Penal (responder por crime de desobediência).
Também está previsto que a ordem de requisição caberá à Secretaria Municipal de Administração e Planejamento, e que deverá ser realizada por meio de “ordem de fornecimento” com indicação dos itens a serem fornecidos pelo particular e respectiva quantidade.
No anexo ao Decreto do Município de Canoas, conforme redação alterada pelo Decreto nº 175/24, estão listados itens que podem ser requisitados, como colchões, travesseiros, fronhas, cobertores, talheres, papel higiênico, etc (https://leismunicipais.com.br/a/rs/c/canoas/decreto/2024/17/175/decreto-n-175-2024-altera-o-anexo-unico-do-decreto-n-174-de-4-de-maio-de-2024-que-determina-a-requisicao-administrativa-de-bens-particulares-em-razao-da-necessidade-de-enfrentamento-da-situacao-de-emergencia-declarada-por-forca-do-decreto-n-167-de-2-de-maio-de-2024).
Também está destacado o caráter temporário do fornecimento, que poderá perdurar durante a situação de emergência provocada pelas cheias, bem como o pagamento de indenização posterior, caso tenha o particular prejuízo financeiro em razão da requisição.
Por fim, o Município de Porto Alegre editou o Decreto nº 22.667/24, que também autoriza a requisição administrativa de bens. Contudo, inclui o fornecimento compulsório de serviços, equipamentos e pessoal necessários para o atendimento emergencial à situação de calamidade pública.
Segundo disposto no art. 3º do Decreto Municipal de Porto Alegre, “A empresa requisitada será remunerada por indenização administrativa, pelo serviço prestado, mediante apresentação de custos compatíveis com o mercado, em apuração a ser feita em processo administrativo específico”.
Também está expresso que a “requisição não gera vínculo contratual com a requisitada, podendo ser revogada a qualquer tempo, garantida a indenização pelo serviço prestado durante a sua vigência.”
VI – Requisição administrativa de produtos e serviços
Importante observar que o art. 5º, inciso XXV, da CF autoriza que em caso de perigo iminente “a autoridade competente” requisite “propriedade particular”, não mencionando expressamente sobre a requisição administrativa de produtos e serviços.
Contudo, como o conceito jurídico de bem, segundo o Código Civil Brasileiro, possui classificação abrangente, incluindo produtos e serviços, não há ilegalidade ou afronta à Constituição Federal se houver requisição de produtos e serviços a empresas privadas e aos particulares.
VII – Requisitos legais
Para atender "requisição administrativa" é preciso, concomitantemente, observar os seguintes requisitos legais extraídos do art. 5º, XXV, da Constituição Federal:
1 - Caracterização de “Iminente Perigo Público”: deve haver situação emergencial que justifique a necessidade de requisição urgente de bens ou serviços. É o caso da falta de alimentos ou de artigos de higiene à população atingida pelas enxurradas.
2 - A requisição deve ser solicitada por “Autoridade Competente”: podem ser requisitados bens e serviços por entes do Governo Municipal, com competência para agir em caso de emergência.
3 - Os bens e serviços dos particulares devem ser necessários: os bens ou serviços requisitados devem ser necessários para resolver ou mitigar o perigo iminente.
4 - Formalização do pedido de requisição: é necessário pedido formal, pela autoridade competente, justificando a urgência e identificando o bem ou serviço necessário para solucionar situação de perigo iminente.
5 - Garantia de pagamento de indenização: a Constituição Federal assegura ao proprietário compensação financeira posterior ao fornecimento do bem a serviço requisitado. Significa que, se forem requisitados alimentos de supermercados, por exemplo, o preço respectivo deverá ser pago oportunamente.
O cumprimento dos requisitos acima relacionados é importante para permitir que municípios façam as requisições e ao mesmo tempo preservem os direitos de empresas e particulares.
VII – Considerações finais
A requisição administrativa de bens é ferramenta legalmente prevista, que poderá ser utilizada pelo Poder Público para resolver demandas emergenciais.
Assim, em casos de perigo público imediato, como os que municípios gaúchos em estado de calamidade pública estão enfrentando em decorrência das inundações, a requisição administrativa de bens, pelas autoridades, deverá ser atendida pelas empresas e particulares, desde que cumpridos os requisitos legais anteriormente elencados.
É também fundamental que empresas e particulares cujos bens ou serviços forem requisitados mantenham organizados documentos relacionados à requisição, incluindo a comunicação oficial recebida, a quantidade de bens ou serviços fornecidos, as notas fiscais de aquisição dos produtos requisitados, a fim de facilitar o procedimento de indenização que deverá acontecer em fase posterior.
IZABELA LEHN - ADVOGADA
Vice-presidente Jurídica e integrante do Comitê Jurídico da ACI-NH/CB/EV/DI
Izabela Lehn Advocacia