A mercantilização da fé

Por ACI: 28/08/2017

Uma engenheira do Espírito Santo ofereceu recentemente ao Senado da República uma proposição que o Senado chama de “Ideias Legislativas”, que podem ser enviadas por qualquer cidadão pelo site www.senado.leg.br/ecidadania.

A ideia central desta proposição é o fim da imunidade tributária para entidades religiosas (igrejas) em decorrência dos constantes escândalos financeiros que líderes religiosos protagonizam. Sendo o Estado uma instituição laica, qualquer organização que permite o enriquecimento e seus líderes e membros deve ser tributada.

Alguns parlamentares ficaram irritados com a iniciativa popular.

O tema deve estar para discussão no Senado.

É de se admitir que, no passado distante, houvesse razões legítimas a justificar a imunidade, da qual o artigo 150, VI, b da Constituição é um resquício. Tratava-se de assegurar a liberdade de culto e repelir o expediente então muito em voga de criar impostos que onerassem minorias religiosas. Parece difícil, porém, sustentar que isso ainda faça sentido.

Quando se tratou da Medida Provisória (MP) 668 – que visava elevar a tributação sobre produtos importados e era uma das medidas do pacote de ajuste fiscal do governo federal, foi incluída pelo então deputado Eduardo Cunha no texto uma discutível ampliação das isenções fiscais sobre os valores pagos pelas igrejas a líderes religiosos. Ampliou-se o estabelecido na Constituição pela lei de 2015 ao permitir que as igrejas não mais precisassem pagar contribuições sobre a remuneração de pastores, as chamadas prebendas.

Mas havia divergências e a Receita continuava autuando as organizações religiosas.

A Constituição Federal de 1988 fixou que a imunidade tributária às igrejas alcança somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas.

O constituinte não deixou dúvidas quanto à imunidade tributária das igrejas: o Estado não pode cobrar impostos sobre as atividades religiosas. Mas o constituinte também foi claro ao dizer que essa imunidade recai apenas sobre as entidades religiosas e suas finalidades essenciais.

A imunidade é para as pessoas jurídicas – e não para as pessoas físicas que estão vinculadas às diversas igrejas ou nelas trabalham.

Cabe acrescer nessa consideração, que a legislação prevê que os valores despendidos pelas entidades religiosas com seus ministros, em face do seu mister religioso ou para sua subsistência, não são considerados remuneração direta ou indireta.

Existe legalmente uma distinção entre atividade religiosa e atividade laboral.

A proposição da engenheira Gisele Helmer certamente não vai dar em nada, mas a mesma merece apoio e exame. Agora, quando se debate a viabilidade fiscal do Estado, é estranho que templos, que movimentam R$ 21 bilhões de reais por ano (dados de 2011) não paguem um centavo de imposto em certas situações.

No novo programa de renegociação de dívidas (Refis) foi inserido por parte da bancada evangélica que as igrejas serão dispensadas
do pagamento de impostos quando fizerem remessas ao exterior.

Este item beneficiaria instituições que têm atividades fora do Brasil, em países da África e até da Europa. Elas hoje pagam 25% de Imposto de Renda e 0,38% de IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) quando enviam valores de “caráter missionário ou evangelizador” ao exterior.

As evidências demonstram que se faz necessário um efetivo controle contábil.

O Estado brasileiro é laico. Entre as inúmeras consequências dessa realidade está a absoluta incompetência do poder público para julgar a veracidade ou legitimidade das doutrinas e ensinamentos de cada uma das religiões. Para o Estado, todas as religiões são iguais e ele não pode assegurar privilégios.

Reconhece-se que algumas igrejas têm bons programas de ordem social e se regem pela solidariedade, através de atividades beneficentes. Mas deve haver imunidade apenas para as atividades religiosas. A brecha constitucional abriu caminhos para inúmeras
irregularidades, enriquecimento ilícito, negociatas, tudo em nome de Deus. Em razão disso, embora assegurada imunidade para os
casos expressamente previstos, o Estado deveria conhecer de todas as manipulações de valores, restringindo, então, abusos. Sob o manto do texto constitucional há uma mercantilização generalizada da fé, inclusive de quem usa franquias e não tem qualquer preparo teológico.

ADALBERTO ALEXANDRE SNEL | ADVOGADO
Integrante do Comitê Jurídico da ACI-NH/CB/EV

 

Receba
Novidades