O testamento vital e o poder de decidir até o fim da vida

Por ACI: 28/11/2017

I – BREVE INTRODUÇÃO

Como você deseja ser tratado quando estiver em estado terminal, incapacitado para tomar decisões e sem perspectiva de cura? Embora o assunto seja de difícil trato, mesmo sendo inexorável o fato jurídico morte, existe ferramenta jurídica conhecida como “testamento vital” ou “diretivas antecipadas de vontade” que permite à pessoa plenamente capaz declarar como espera ser tratada para garantir um final de vida digno, quando estiver em condições vulneráveis no que diz respeito ao seu estado de saúde, e, portanto, sem condições de exprimir sua vontade sobre
os tratamentos médicos aplicáveis à moléstia que lhe aflige ou que talvez venha incomodar futuramente.

A temática é importante porque através do testamento vital é possível evitar excessos terapêuticos que muitas vezes causam sofrimento e não contribuem para a cura, mas apenas retardam a morte.

O assunto será abordado no presente ensaio de forma sintética, sem a pretensão de ser exaurido, com ênfase nos seguintes tópicos: conceito, requisitos de validade, forma e conteúdo do testamento vital; regulamentação perante a legislação brasileira; nomeação de procurador da saúde e para outros assuntos; jurisprudência sobre o tema.

II – CONCEITO, REQUISITOS DE VALIDADE, FORMA E CONTEÚDO DO TESTAMENTO VITAL

O testamento vital é um remédio jurídico que permite que a pessoa capacitada juridicamente, gozando ou não de saúde plena, declare como deseja ser tratada em seus últimos dias de vida.

Segundo pondera Elias Farah, testamento vital “é a declaração antecipada e lúcida da vontade de uma pessoa, sobre o desejo de receber ou não receber tratamento ou proteção a partir do momento, por qualquer motivo, em que se tornar incapaz de manifestar sua vontade.”

Para Isadora Urel o testamento vital é uma declaração de vontade de uma pessoa que deixa registrado “o que quer ou o que não quer” a título de tratamento médico se “perder a capacidade de autodeterminar-se.”

Para a realização do testamento vital basta que a parte interessada seja plenamente capaz, podendo ser realizado quando a pessoa gozar de plenas condições de saúde ou quando já estiver acometida por alguma doença, desde que esteja lúcida.

Quanto à forma, o testamento pode ser realizado por instrumento particular subscrito por testemunhas ou por escritura pública lavrada em Tabelionato, podendo ser revogado a qualquer tempo, o que obviamente depende da capacidade jurídica e da lucidez do testador. Importante observar que o testamento vital realizado por escritura pública é a forma que nos parece mais aconselhável, principalmente porque o próprio notário deverá declarar a capacidade e a lucidez do testador, evitando impugnações futuras quanto ao ponto.

Quanto ao conteúdo, o testamento deverá prever a vontade do paciente de submeter-se ou não a determinados tratamentos médicos. Não é possível contrariar o ordenamento jurídico vigente, autorizando, por exemplo, a prática da eutanásia, pois a mesma é proibida no Brasil e se alguém provocar a morte de outrem, ainda que com o seu consentimento, estará praticando homicídio perante as leis brasileiras. Mas é possível, por meio do testamento vital, recusar certos tratamentos, como, por exemplo, a intubação, a traqueostomia, a hemodiálise, a internação em UTI (ou limitá-la a determinado período), dentre outras medidas que asseguram o prolongamento artificial da vida, desde que tais tratamentos não
tragam benefícios ou cura ao paciente.

III – REGULAMENTAÇÃO DO TESTAMENTO VITAL PERANTE A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Não existe uma lei específica no ordenamento jurídico brasileiro tratando sobre o testamento vital.

A validade do testamento vital, cuja finalidade é garantir um final de vida com qualidade e dignidade está alicerçada no princípio da dignidade da pessoa humana previsto na Constituição Federal (art. 1º, III), que garante ao indivíduo que possa conduzir sua vida de acordo com a sua consciência.

Também está a validade do testamento vital fundamentada no princípio da autonomia de vontade, que garante que o desejo do indivíduo seja colocado em prática. Ou seja, pode ele, com total autonomia, escolher seus tratamentos ao final da vida, inclusive recusar tratamento, conforme dispõe o art. 15 do Código Civil Brasileiro: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.”

Por fim, a Resolução nº 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina esclarece as diretrizes básicas sobre o testamento vital, denominado na área médica de “Diretivas Antecipadas de Vontade-DAV”. São elas:
• o testamento vital ou as diretivas antecipadas de vontade são definidas como “o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade (art. 1º);
• nas definições sobre tratamentos médicos e cuidados com o paciente incapaz e impossibilitado de comunicar sua vontade “o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade” (art. 2º);
• se o paciente houver designado um procurador para representá-lo, “suas informações serão levadas em consideração pelo médico” (art. 2º, § 1º);
• só não serão consideradas as diretivas antecipadas do paciente ou do procurador que contrariarem o Código de Ética Médica (art. 2º, §2º);
• as diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre os desejos de seus familiares;

Como visto, não existe uma lei específica regulando a matéria, mas um conjunto de princípios e regras aplicáveis em caso de algum conflito de interesses.

IV – NOMEAÇÃO DE PROCURADOR DA SAÚDE E PARA OUTROS ASSUNTOS

O paciente, ao realizar o testamento vital, tem o direito de nomear um procurador para representá-lo junto aos médicos com relação aos cuidados e tratamentos de saúde (disposição de caráter não patrimonial), que poderá tomar decisões referentes ao seu tratamento de saúde (decidir em seu nome), podendo ser ou não parente.

Além da nomeação de procurador para assuntos de saúde realizada no testamento vital, é possível e conveniente, conforme o caso, a nomeação de procurador para outros assuntos (de cunho patrimonial), por instrumento apartado e com validade para situações de incapacidade permanente ou temporária.

Importante elucidar que a nomeação de um procurador para assuntos patrimoniais independe da existência de um testamento vital, mas pode com este coexistir, garantindo a tomada de decisões não apenas quanto à saúde do paciente, mas também medidas de ordem patrimonial, o que se mostra muitas vezes conveniente.

Este procurador para assuntos patrimoniais poderia, por exemplo, alienar um imóvel para garantir o sustento do paciente em seus últimos dias de vida, dentre outras medidas importantes que podem ser autorizadas desde que outorgada procuração para tanto.

V – JURISPRUDÊNCIA SOBRE O TEMA

Existe precedente jurisprudencial brasileiro sobre o assunto oriundo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, conforme ementa que segue:
“APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO. ORTOTANÁSIA. TESTAMENTO VITAL.

1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à amputação, preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para “aliviar o sofrimento”; e, conforme laudo psiquiátrico, se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida.
2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural.
3. O direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 2º, III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia, máxime quando mutilatória. Ademais, na esfera infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento médico ou intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer dizer que, não havendo risco, ou mesmo quando para salvar a vida, a pessoa pode ser constrangida a tal.
4. Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura na Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina.
5. Apelação desprovida.” (Processo nº 70054988266 (CNJ: 0223453-79.2013.8.21.7000), Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do RS. Relator: Irineu Mariani, Data de Julgamento: 20/11/2013)

O caso versa sobre o direito de um paciente idoso com plena capacidade de não ter seu pé amputado e de poder “morrer para aliviar o sofrimento”. O Judiciário entendeu que se trata de caso de ortotanásia e que “se o paciente se recusa ao ato cirúrgico mutilatório, o Estado não pode invadir essa esfera e procedê-lo contra a sua vontade, mesmo que o seja com o objetivo nobre de salvar sua vida.” Além disso, foi considerada a existência de testamento vital em que o paciente havia previamente declarado que não consentia a amputação.

O acórdão do Tribunal de Justiça do RS destacou também que “a Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a cirurgia ou tratamento.”

VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A doença terminal ou incapacitante muitas vezes gera conflitos entre os membros de uma família, que precisam decidir e chegar a um consenso, juntamente com o médico, sobre o tipo de tratamento adequado ao paciente, muitas vezes doloroso e posto em prática para garantir curta sobrevida, mesmo sem qualquer chance de cura.

O testamento vital é importante ferramenta que permite ao paciente em estado de lucidez deliberar sobre os tratamentos que garantirão maior qualidade de vida ao final da sua existência (garantia de vida digna) e aqueles desde logo afastados, que não poderão ser aplicados.

Além disso, a existência de um testamento vital garante maior segurança aos familiares e aos médicos na tomada de decisões sobre os tratamentos adequados, tendo em vista a prévia deliberação realizada pelo próprio paciente.

A matéria é complexa e envolve questões éticas, médicas, psicológicas e jurídicas que deverão ser enfrentadas por aquele que desejar manter o poder de decisão até o final da vida, garantindo, de acordo com a sua consciência, os tratamentos que aceita e os que rejeita com a exclusiva finalidade de atenuar qualquer sofrimento.

IZABELA LEHN DUARTE | ADVOGADA
Integrante do Comitê Jurídico da ACI-NH/CB/EV

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